sexta-feira, 18 de setembro de 2009

OS MÍSSEIS DESGOVERNADOS DA RELIGIÃO

PROMETA A UM JOVEM QUE A MORTE NÃO É O FIM E ELE IRÁ, COM TODA BOA VONTADE, CAUSAR UM DESASTRE
de Richard Dawkins
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Um míssil com sistema de guiagem passivo corrige sua trajetória de vôo orientando-se, por exemplo, pelo calor das turbinas de um jato. Apesar de representar um grande progresso em relação a um simples projetil balístico, esse tipo de míssil não consegue localizar alvos específicos. Não poderia atingir um edifício predeterminado em Nova Iorque se for lançado de um lugar distante como Boston.

Para isso é preciso um "míssil inteligente" moderno. A tecnologia de miniaturização dos computadores permite hoje que mísseis inteligentes possam ser programados com a topografia de Manhattan e instruções para que se dirijam à torre norte do World Trade Center. Os EUA possuem mísseis com esse nível de sofisticação, como se viu na Guerra do Golfo, mas, por razões econômicas, esses mísseis estão fora do alcance de terroristas comuns, e, por razões científicas, fora do alcance de governos teocráticos. Existiria uma alternativa mais simples e barata?

Na segunda guerra mundial, antes que dispositivos eletrônicos fossem miniaturizados e baixassem de preço, o psicólogo B. F. Skinner pesquisou mísseis guiados por pombos. No experimento, o pombo ficava numa cabine minúscula, e era treinado para bicar botões de maneira a manter um determinado alvo no centro da tela; no míssil, o alvo usado seria o real.

O princípio funcionou, embora nunca tenha sido posto em prática pelas autoridades americanas. Mesmo considerando-se o custo de seu treinamento, pombos são mais baratos e mais leves do que computadores de eficiência comparável. As caixas de Skinner indicam que, após um treinamento com slides coloridos, o pombo poderia guiar um míssil em direção a um marco arquitetônico no sul da ilha de Manhattan. O pombo não tem idéia alguma de que está guiando um míssil. Prossegue bicando dois retângulos altos na tela e, de tempos em tempos, recebe a recompensa na forma de comida. O processo continua até .... o oblívio.

Pombos podem fazer o papel de um sistema embarcado de guiagem barato e descartável, mas há que se considerar o custo do próprio míssil. Jamais um míssil com o poder de destruição necessário conseguiria penetrar o espaço aéreo americano sem ser interceptado. Para isso é preciso um míssil que não possa ser reconhecido até que seja tarde demais. Algo assim como um grande jato comercial, trazendo a marca inofensiva de uma companhia de aviação conhecida e enorme quantidade de combustível. Essa é a parte fácil. Mas como contrabandear para dentro da cabine do piloto o sistema de guiagem necessário? Não é razoável esperar que pilotos entreguem o assento esquerdo a um pombo ou a um computador.

Que tal usar homens em vez de pombos como sistema de guiagem embarcado? Homens são tão numerosos quanto pombos, seus cérebros não são muito mais caros e, para muitas tarefas, chegam a ser superiores. Seres humanos têm um histórico comprovado de seqüestro de aviões pelo uso de ameaças, que funcionam porque os pilotos legítimos prezam a própria vida e a vida de seus passageiros.

Porém, assumir que os seqüestradores também valorizem a própria vida e agirão racionalmente para preservá-la só funciona com módulos de guiagem que tenham instinto de auto-preservação. Se o avião for seqüestrado por um homem armado que, embora preparado para enfrentar riscos, deseje continuar vivendo, ainda há espaço para a negociação. Um piloto racional atende os desejos do seqüestrador, leva o avião ao solo, pede comida para os passageiros e deixa as negociações para pessoas treinadas em negociar.

O problema com sistemas de guiagem humanos é exatamente esse. Ao contrário da versão pombo, eles sabem que o sucesso da missão culminará em sua própria destruição. Seria possível desenvolver um sistema biológico de guiagem que combinasse a natureza obediente e descartável do pombo ao engenho e habilidade de infiltrar-se insidiosamente do homem? O que é preciso, em suma, é um ser humano que não se importe de explodir. Esse seria o sistema de guiagem embarcado perfeito. Entusiastas do suicídio, no entanto, não são fáceis de se encontrar. Mesmo pacientes terminais de câncer podem perder a coragem no último instante antes da colisão.

Será que poderíamos utilizar seres humanos normais e persuadí-los a acreditar que não morrerão em conseqüência de atirar um avião em vôo contra um arranha-céu? Até parece! Ninguém seria tão estúpido! Mas, espere, ouça a minha idéia - é meio maluca, mas pode ser que funcione. Considerando que é certeza que morrerão, será que não poderíamos convencê-los a acreditar que viverão novamente após o ato? Tenha paciência! Não!, escute, pode ser que funcione. Oferecemo-lhes um atalho para o Grande Oásis no Céu, aquele sempre refrescado por fontes eternas, pois jamais atrairíamos o tipo de jovem que queremos com harpas e asas de anjo. Temos de dizer-lhes que os mártires receberão a recompensa especial de 72 noivas virgens, todas interessadas e exclusivas.

Será que cairiam nessa? Sim. Jovens do sexo masculino, inundados de testosterona, e feios demais para atrair uma mulher neste mundo, podem estar desesperados o suficiente para apostar em 72 virgens para uso privado no outro.

Parece delírio, mas vale a pena tentar. Comece a iniciá-los desde cedo. Forneça-lhes uma mitologia completa e coerente para fazer a grande mentira parecer plausível. Dê-lhes um livro sagrado e faça com que o recitem de memória. Sabe, eu acho que até poderia funcionar. Por sorte, temos em mãos um sistema exatamente assim: um método de controle da mente aperfeiçoado através dos séculos, e transmitido de geração a geração. Milhões de pessoas foram educados em sua doutrina. Chama-se religião e, por razões que um dia entenderemos, a maioria das pessoas acredita nela (na América mais do que em qualquer outro lugar, apesar da ironia passar despercebida). Tudo o que precisamos agora é reunir alguns desses fanáticos da fé e dar-lhes lições de vôo.

Leviandade? Trivialização de um horror indizível? Minha intenção é exatamente oposta; é séria e motivada por luto profundo e raiva feroz. Estou tentando chamar a atenção para o elefante na sala, esse mesmo que ninguém nota por educação ou devoção: a religião, ou, mais especificamente, o efeito depreciador que a religião tem sobre a vida humana. Não falo em depreciar a vida alheia (apesar dela também fazer isso), mas depreciar a nossa própria vida. A religião ensina a absurdidade perigosa de que a morte não é o fim.

Se a morte é o fim, pode-se esperar que um agente racional valorize a própria vida e relute em arriscá-la. Assim o mundo se torna mais seguro, como é mais seguro um avião cujo seqüestrador queira continuar vivendo. No extremo oposto, se um número significativo de pessoas convencerem-se, ou forem convencidas por seus sacerdotes, de que a morte de um mártir é o mesmo que apertar o botão do hiperespaço e ser teletransportado por um buraco-de-minhoca para outro universo, o mundo tornar-se-á um lugar mais perigoso. Principalmente se acreditarem também que o outro universo é um refúgio paradisíaco das tribulações do mundo real. Adicione-se a isso a crença sincera, ainda que ridícula e degradante para as mulheres, em promessas sexuais, e não será surpresa que homens jovens, ingênuos e frustrados supliquem que sejam selecionados para missões suicidas.

Não há dúvida de que o cérebro suicida e obcecado pela vida após a morte é uma arma poderosa e perigosíssima. Pode ser comparado a um míssil inteligente. Seu sistema de guiagem é superior em muitos aspectos à mais sofisticada inteligência eletrônica que se possa comprar. Ainda assim, para o cinismo de governos, organizações ou igrejas, é uma arma baratíssima.

Nossos líderes descreveram as atrocidades recentes com o chavão de costume: covardia insensata. Insensata é uma palavra que serve para descrever a vandalização de uma cabine telefônica, não para entender o que atingiu Nova Iorque no dia 11 de setembro. Os executores da ação não agiram de forma insensata, e é certo que não foram covardes. Ao contrário, reuniram inteligência e coragem com uma eficiência insana, e vale a pena tentar entender de onde veio essa coragem.

Veio da religião. Religião é também a fonte fundamental da discórdia no Oriente Médio. Foi o que motivou o uso dessa arma letal, mas essa é outra história e não é o assunto aqui. Meu tópico é a própria arma. Encher o mundo de religião, ou religiões do tipo abraâmico, é como forrar as ruas de armas carregadas. Não se surpreendam se forem usadas.


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Publicado no The Guardian, sábado, 15 de setembro de 2001.

Richard Dawkins é professor de entendimento público da ciência na Universidade de Oxford, e autor de "O Gene Egoísta", "A Escalada do Monte Improvável" e "Desvendando o Arco-Íris".

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